(How
Can I Go On?)
“Quando
toda a sal está tirada do mar Eu
estou parado, derribado do trono Estou
nu e estou sangrando Mas
ao apontares com o dedo, violentamente Há
alguém que acredite em mim Que
ouça a minha súplica E
me cuide? Como
posso continuar Dia
a dia Quem
me pode dar a força Para
tudo Onde
posso estar seguro Onde
pertenço Neste
mundo imenso de tristeza Como
posso esquecer-me Dos
sonhos lindos que compartimos Estão
perdidos E
não se encontram em parte alguma Como
posso continuar Às
vezes tremo na escuridão Não
posso ver Quando
as pessoas me assustam Tento-me
esconder Tão
longe da multidão Há
alquem que me console? Senhor…
cuida de mim” |
I stand dethroned I’m naked and I bleed But when your finger points so savagely Is anybody there to believe in me To hear my plea And take care of me How can I go on From day to day Who can make me strong In every way Where can I be safe Where can I belong In this great big world of sadness How can I forget Those beautiful dreams that we shared They’re lost and they’re nowhere to be
found How can I go on Sometimes I tremble in the dark I cannot see When people frighten me I try to hide myself So far from the crowd Is anybody there to comfort me Lord... take care of me
|
Voz:
Letra: Freddie Mercury, Mike Moran
1988
- “MONACO 1988”
Esse
ano o Ayrton conseguiu “o carro adequado”. Nas mãos dele, a McLaren Honda
podia trazer só uma coisa: o título do campeão mundial. Mas não foi tudo tão
simples. A gente dizia, olhando superficialmente, que um motorista do tamanho do
Ayrton Senna, dotado de um talento grande (que não lhe fora oferecido, ele é
que levou o talento indiscutível que tinha até a perfeição), não tinha
dificuldades para conseguir o título do campeão mundial. Nada mais longe da
verdade que aquela opinião, porque o Ayrton não ganhou uma só corrida sem
luta e esforços extraordinários. Ele cumpriu todas e as mais pequeninas obrigações
dele com aplicação e honestidade. E além de todos aqueles detalhes conhecidos
só às pessoas ligadas a esse desporto perigoso, também existia para o Ayrton
o factor humano especial, quer dizer, “as pessoas que não tinham sido capazes
de compreender”. Eles foram mais uma circunstância agravante porque muitas
vezes o fizeram parar, tiraram-lhe os direitos, não percebendo o imenso valor
humano do “homem-máquina” como o tinham chamado no seu desentendimento.
Portugal 1988
Apesar
de tudo o Ayrton seguia o caminho dele, sem que nada lhe fizesse parar. Esse ano
ele viveu uma transformação espiritual, foi-lhe revelado o que lhe movia em
verdade, aconteceu o “Monaco ‘88”. Primeiro as qualificações. Durante o
treino repararam logo na diferença na maneira de conduzir dele. O Ayrton tentou
descrever isso mais tarde:
“Eu
sentia-me como se conduzisse num túnel. A pista toda voltou a ser um túnel…
Cheguei a tão alto nível de concentração como se eu e o meu carro fôssemos
um ente. Estavamos juntos no máximo. Eu dava tudo ao meu carro e ao contrário.”
“De
repente foi como se tivesse acordado e reparado em que tinha estado num nível
diferente da consciência. Estive mesmo pasmado, voltei para o box
logo e naquele dia não conduzi mais. Compreendi que tinha estado numa espécie
de espiral sem começo nem fim. Mais rápido e mais rápido, mais perto e mais
perto da perfeição… Mas também muito mais vulnerável, os limites de
segurança mais fininhos…”
Foi
ali que o Ayrton se aproximou quanto era possível à perfeição, mas ao mesmo
tempo apareceu-lhe o preço que isso exigia. Pasmado deu por isso: se
eu ceder à chamada da velocidade até o final, isso custar-me-á a vida, e se o
não fizer, não há muitas razões para conduzir, porque o mero título já é
pouca coisa depois das experiências parecidas! Para o Ayrton Senna
aproximava-se iminentemente o momento mais importante da toda a carreira dele, o
momento do qual ele próprio disse: “O
erro que fiz me mudou física e mentalmente”.
E
esse erro aconteceu no domingo quando, estando o primeiro 12 voltas antes do
final, com 49 segundos de vantagem, de repente saltou fora e acabou na cerca
protectora. Um momento antes tinha tudo nãs mãos dele e mais potencial
inutilizado na reserva, e então tudo isso desapareceu à velocidade incompreensível.
Toda a glória e a miséria das aspirações humanas passou diante dos olhos
dele naquele momento. As pessoas só viram de tudo isso que o Senna perdeu a
concentração por completo. O demais ficou escondido, o Ayrton afastou-se logo
do autódromo recuando na solidão completa. Havia muitas perguntas para
responder, com consciência e iminência. Uma coisa era esencial: porque
é que fico sentado no bólide na mesma e arrisco a minha vida, se os limites são
tão finos, o homem tão frágil, e a recompensa tão simbólica? Estava à
procura da resposta verdadeira durante dias porque reparou em que os valores
tinham que ser organizados doutra maneira, senão nada tinha o sentido
verdadeiro.
Não encontrou o verdadeiro sentido com a razão, senão com o coração
grande dele no qual cabia o mundo inteiro. Percebeu que não estava no bólide
porque ele assim o queria, e que não corria só por gostar da velocidade, senão
que a F-1 era um meio, o meio pelo qual podia obrar neste mundo com mais eficácia
e divulgação, porque muita gente precisava dele, para ele lhes dar um pouco da
dignidade e o sabor do êxito – uns momentos da felicidade. As palavras que
proferiu como resposta ao Dr. Sid Watkins, quando este lhe perguntou, um dia
antes da morte, porque não deixava tudo aquilo, comprovam que o Ayrton tivesse
compreendido a essência da missão dele na F-1 e que lhe tivesse ficado fiel.
“Ó Sid”, disse, “há coisas que não controlamos… Não posso desistir, tenho que continuar.”
Monte Carlo 1988
Foi
por isso que o Ayrton não desistiu, nem sequer em Imola, ainda que soubesse com
certeza que se tinha aconhegado quase ao limite, porque ele já não pertencia a
si próprio. Fez-se a propriedade dos milhões, porque as abstracções não
chegam para as pessoas. A gente precisa de um exemplo concreto, quer que as suas
ambições e aspirações fossem encarnadas, porque precisa de um ponto de apoio.
O Ayrton voltou a ser esse ponto e já não era possível voltar para trás, não
para um homem como ele. Um dia falou sobre o que lhe aconteceu em Monte Carlo:
“Foi
uma necessidade intensiva da ter uma resposta – para mim, sobre mim, sobre a
nossa vida. Foi Deus quem nos deu todas as coisas de que somos conscientes, e
muitas de que somos inconscientes. Mesmo se compreendermos ou não porque
vivimos de certa forma.”
Em todo caso, o Ayrton ficou fiel a missão dele até Monaco ’88,
inconscientemente, e a partir desse ano, conscientemente. Foi assim que começou
a segunda parte da sua carreira que ficou a mesma à primeira vista porque ele não
mudou os costumes dele, só levantou o peso da missão dele com plena consciência
e responsabilidade. E a partir dali, sempre tentava ficar deste lado do limite
porque compreendeu no fundo o valor do dom mais precioso que Deus nos deu – a
vida.
“A
vida é uma coisa que Deus nos dá, mas na maioria dos casos depende de nós de
empregarmos a nossa razão para mostrarmos a ele que compreendemos que a vida e
a saúde são um grande dom dele. A nossa responsabilidade é guardar uma dádiva
tão importante”, disse.
Por
isso nunca mais se deixou ir tão longe como no treino para Monaco ’88.
“Não
me deixei ir tão longe outra vez, até alcançar de novo aquela condição.
Posso controlá-lo antes de chegar a aquele ponto. Isso é um risco demasiado
grande”, explicou.
Pode-se
ver que ele não era um fanático, nem um jogador à sorte, nem um cobiçado da
glória, ainda que o acussasem com insistência que não se importava pela vida
dele, nem a dos outros.
Esse
ano tão importante para o Ayrton teve o seu fim dramático e muito especial. A
luta para o título acabou em Suzuki. Ele próprio contou o que lhe aconteceu
durante essa corrida:
“Esse
dia foi incrível. Antes o pole e
depois o mau começo. Já tinha perdido tudo, mas ainda encontrei a força para
lutar, tive que conduzir com a maior agressividade, sem cair num erro. Foi um
dia daqueles quando tudo sai, todas as capacidades naturais, um dia desses que não
se encontram sempre. Disse-me: em frente, em frente, em frente! E estive no
final.”
“Dava
graças a Deus por essa victória, por essa oferta grande, quando vi em frente
de mim uma imagem enorme de Jesus. Foi incrível! Em verdade ainda conduzia com
toda a concentração, com tudo que tinha – quando de repente, essa visão!”
Realmente esse dia foi incrível. O motor apagou-se-lhe no começo: “Foi
um erro meu e também um erro da embreagem”, explicou.
O
motor desligado no começo – isto é o fim, mas não o fim do Senna, em Suzuki.
A inclinação da pista melhorou as coisas.
“Larguei
a embreagem e comecei a andar, o motor desligou-se de novo, mas consegui ligá-lo
outra vez e o carro moveu-se com hesitação. Tive sorte mesmo”,
descreveu o Senna esse começo tardio.
Depois da primeira volta era octavo e o único concorrente verdadeiro (também o colega da equipa), o Prost, primeiro. Até a volta 19 já tudo tinha mudado, o Senna estava detrás do Prost. E passadas as 8 voltas seguintes, era o primeiro. Conduziu a última volta com frialdade de um cirurgião, olhando a cada detalhe. Com tão extrema concentração chegou à última curva, onde uma coisa extraordinária esperava por ele; foi ali que recebeu a confirmação de a obra dele ser aceite e amada. Ao conduzir a volta de honra, levantou o capacete e a chuva misturava-se com as lágrimas dele:
Suzuka 1988
“Sim,
chorei ao passar a linha do final!”, confessou sem hesitar.
Foi
assim que o Ayrton Senna ganhou o seu primeiro título.
1989
OBRA DOS ÁRBITROS INJUSTOS
Eles
sabiam que o Ayrton rezava antes de cada corrida. –Reza para ser o primeiro
seja como for! – é tudo o que podiam concluir disso. E ele não rezava para
ser o primeiro seja como for. Rezava para fazer o trabalho em frente dele o
melhor que podia, de forma mais correcta e mais justa, para obter o melhor
resultado nas dadas circunstâncias, quer dizer, para levar até o final o
trabalho de muita gente com a própria força dele. Por isso é que podia ir-se
embora da pista decepcionado, mas tranquilo no coração, depois de ser deitado
fora da corrida por um estrago no carro, começava a pensar logo nas melhoras
para a corrida seguinte; mas não podia aguentar que fosse impedido de correr
pela estupidez, ou ainda pior, pela injustiça e pela hipocrisia daqueles que
talhavam os regulamentos duplos. Por causa da injustiça ficava doente, mas não
se rendia. Esforçava-se sempre para lutar.
“A
justiça, a honestidade – é disso de que se trata, isso é que são os
valores importantes na minha vida”, dizia assim diante da multidão de
jornalistas cínicos, na conferência em Adelaide ’89, tentando explicar a
profundidade da injustiça que lhe tinha sido feita com a disqualificação em
Suzuki, enquanto os olhos se lhe enchiam de lágrimas, porque o Ayrton não
podia fazer calar o coração quando lhe acontecia uma situação na vida que
exigia o choro. Os olhos dele atraiçoavam sempre o que pensava e sentia num
momento. Nunca tinha sido capaz de esconder a dor e a tristeza (aliás nem a
alegria), por muito que se esforçasse. Também em Imola ’94 não pôde
esconder as lágrimas pelo Roland. Os outros puderam, ele não. Isso provocava a
admiração entre a gente porque as lágrimas sinceiras e óbvias quase não se
vêem; pouca gente leva na alma tão grandes valores que seja capaz de as
defender em público e com lágrimas.
Esse
aspecto exterior do coração tenro foi descrito pelo Dostoievski como “o dom
de chorar”, e o Ayrton tinha esse dom, embora que neste mundo “o dom de
chorar” não fosse precisamente um dom, senão uma maldição.
Porque o Ayrton não pôde conter as lágrimas em Adelaide? Porque os árbitros
injustos fizeram o trabalho deles. Já não escolhiam os meios em contra dele,
deve ser pela obrigação de considerar maluco, perigoso e inimigo àquele que não
compreendiam. “Ayrton tem um pequeno problema. Pensa que não se pode matar
porque acredita em Deus, e eu acho que isto é muito perigoso para os outros
motoristas”, declarou o Prost.
“Não
provoquei o acidente em Suzuki”,
explicava o Senna – “Aquilo nunca foi
uma responsabilidade minha e é preciso ver isso no vídeo, não ouvir as minhas
palavras.”
Suzuka 1989
Vimos. Percebemos. Ele não tinha a culpa. E não se entregou depois do choque com o Prost: voltou à pista e seguiu conduzindo até o final. Não só pensava que ganhou, ele ganhou mesmo. Ganhou diante todos, e apesar disso foi desqualificado, retiraram-lhe a victória e com isso a hipótese do título, impediram-no de subir ao trono do campeão… Ele fez tudo o que um ser humano podia fazer lutando pela justiça. Abriu o coração, despiu a alma, pediu apoio como se fosse uma criança. Disse a verdade sobre a verdadeira condição das coisas em frente de todos. Um comportamento perigoso porque estava sozinho em contra do sistema, e aquilo é uma luta que acaba sempre de forma igual, com a victória do sistema. Deram-lhe para beber o copo de amargura até o fundo – a lição que nunca ia esquecer, mas que o não mudaria. “Nunca me esqueci disso!” – disse uns anos mais tarde quando lhe perguntaram por isso. Não esqueceu mesmo, mas tinha perdoado.
Suzuka 1989
É uma grande ironia que o Ayrton tivesse que viver os momentos mais
duros da carreira dele precisamente no Japão, porque ele foi uma figura muito
especial para os japoneses. Foi adorado no mundo inteiro, os brasileiros
gostavam dele sem reserva, os europeus tinham-lhe respeito, mas foram os
japoneses quem o compreendiam melhor. E foi precisamente no Japão que viveu os
longos momentos de incerteza, sozinho por completo, à espera da decisão dos
funcionários. Esses momentos e a cruelmente injusta decisão que tomaram,
feriram a alma dele mais profundamente do que a gente podia imaginar porque ele
não estava preparado para isso, não podia acreditar numa coisa parecida de
forma alguma. Por isso é que precisou de tanto tempo para se recuperar. Não
havia modo para evitar aquela injustiça amarga. Tinha que experimentar isso e
também a emoção da solidão absoluta que sentiu um dia numa praia deserta
quando olhou de frente a grande solidão dele.
Essas
experiências foram precisas; no final elas deram-lhe a possibilidade de
encontrar a resposta à mais difícil das perguntas, com a qual se enfrenta cada
homem que tenta viver segundo as leis divinas. É a resposta àquelas terríveis
palavras de Jesus na cruz: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”
Essas
palavras e a maneira como um indivíduo as percebe, isso é um ponto onde a fé
se perde ou se confirma para sempre. Ficamos sabendo como foi a resposta
encontrada pelo Ayrton quando olharmos na mais íntima parte da alma dele. Somos
gratos à Adriane Galisteu por nos dar a possibilidade deste olhar publicando o
poema-oração que o Ayrton, depois de ter encontrado a resposta, levava sempre
com ele. Eis o poema:
OS
RASTOS NA AREIA
Uma
noite tive um sonho…
Sonhei
com que estava numa praia com o Senhor e no céu
podia ver
As
cenas da minha vida: reparei que durante cada cena apresentada
Ficavam
os rastos de duas pessoas na areia.
Quando
a última cena passou diante de nós, olhei para trás
E
vi que muitas vezes no caminho da minha vida, na areia
Estava
só o rasto de um homem. Também vi que isso acontecia
Nos
momentos mais duros e mais tristes da minha vida.
Aquilo
me confundia muito. Por isso perguntei ao Senhor:
“Senhor,
disseste-me: quando um dia eu decidir a te seguir,
Hás-de
andar comigo sempre, todo o caminho,
Mas
reparei em que nas maiores turbulências que tive
Na
minha vida, só havia o rasto de uma pessoa na areia.
Não
consigo compreender porque me abandonaste quando mais precisava de ti.”
O
Senhor respondeu-me:
“Meu
filho amado: amo-te e nunca te abandonaria
Nos
teus momentos da tentação e do sofrimento.
No
momento de veres o rasto de uma pessoa só na areia
Eu
levava-te nas minhas mãos.” *
1990
- “QUE TEM DE INJUSTO NO DESEJO DE GANHAR?”
Ayrton
Senna
A
espera demasiado longa mata o coração
E
o desejo cumprido é a árvore da vida.
Sentenças, 13,12
O
ano 1989 acabou com mágoas, e outras mágoas chegaram logo, os problemas
relacionados com a emissão da super-licença para 1990, por causa de tudo isso
o Ayrton entrou no novo ano sem alegria. “Só
por responsibilidade à equipa é que sigo conduzindo… Tanta gente e os
trabalhos deles dependem de mim, e eu tenho que pensar nisso também”,
disse isso no início do ano.
Outra
vez a necessidade, a estructura da alma dele que não lhe permitia simplesmente
deixar tudo. Outra vez aquele factor irracional. E as pessoas à volta dele?
Romperam os laços mais sagrados, pisaram aquilo que lhe parecia como a base da
vida e nem deram por isso. Queriam mostrar generosidade, estendiam as mãos para
se reconciliarem, e visto que o Senna era “religioso”, isso lhes
Outra
vez Suzuki. E também os árbitros e as decisões injustas. Quando já tinha
conquistado o pole e queria lutar para o título com honestidade, na pista, para
que ganhasse o melhor, embora fosse ele ou Proust, os árbitros danificaram-no
de novo. Ia começar a corrida do lado direito, o pior, foi a decisão deles,
ainda que o Gerhard Berger e ele tivessem combinado com eles no treino da
quarta-feira passada (até o Proust concordou) que aquele que ganhava o primeiro
posto ia começar do lado esquerdo, o melhor. Mas o chefe Balestre não gostou
nada porque o Ayrton tinha conquistado o pole
e disse que NÃO. Não podendo segurá-lo, pelo menos ia pôr dificuldades no
caminho à victória. E o Ayrton?
Que devia sentir? Sabia muito bem, depois da experiência amarga do ano passado,
que as súplicas para a justiça não dariam resultado nenhum embora que a
injustiça feita a propósito fosse óbvia.
Está
escrito na Bíblia que Jesus várias vezes estive cheio de raiva e magoado por
causa da dureza dos corações das pessoas à volta dele, dizendo-lhes uma vez:
“Povo malvado e infiel! Quanto tempo vou estar convosco? Quanto tempo terei de
vos aguentar?” Algo parecido tinha que encher o coração do Ayrton nesse
momento. A raiva e a tristeza deviam ser as emoções que se apoderaram dele. A
raiva pela injustiça, e a tristeza pela incapacidade de a impedir. Mas quando a
gente está certa, tem que seguir em frente, e ele explicou-nos melhor como é
que ia fazer:
Suzuka 1990
“Estava tão frustrado que fiz uma promessa a mim próprio que, se tivesse perdido o primeiro posto no começo, iria atacar na primeira curva logo a seguir sem dar pelo resultado. Irei em frente, e o Prost não entrará na primeira curva diante de mim.”
Prestem
atenção a estas palavras: irei em frente custe o que custar, LOGO, se o Prost
ganhar a vantagem por causa da injustiça. Se tivessem começado a carreira de
forma honesta, a luta teria demorado muito mais, e nunca saberemos o resultado
dela, pois que a corrida acabou depois de 10 segundos para os dois motoristas. O
Prost precisava da vitória naquela corrida para ganhar o título, o Senna não,
de forma que com a desqualificação do Prost, logo ficou o campeão mundial.
Suzuka 1990
A
conquista do segundo título trouxe-lhe o maior número de críticas. Porém, não
esperava que fossem atacá-lo com tanta fúria. Cansadíssimo, retirou-se detrás
do muro dele com as palavras: “Não me
interessa.” Desta vez nem sequer tentou explicar as causas e as consequências,
porque o que chega, chega.
Apesar
disso a corrida em Suzuki ’90 entrou na história como a “vingança do
Senna” – o Senna deitou o Prost fora da pista a propósito na primeira curva
para se vingar de ’89 – isto foi (e tem sido) a conclusão de todos. Visto
que esta frase explica o acontecimento de uma forma tão lógica e racional e
parece um julgamento tão definitivo, quem se atrevia a oferecer outra explicação!
Vamos tentar?
Voltemos um pouco atrás, a Imola 1989. Foi ali que os dois colegas e rivais do clube, o Senna e o Prost combinaram de se não arriscarem sem necessidade na primeira fase da corrida e que o primeiro a entrar na curva não ia ser atacado pelo segundo até sairem da curva. Um pacto óptimo, parecia, mas depois ficou bem claro que não o era porque era muito impreciso, sem marcar com claridade os lugares onde não se podia atacar. Depois o Ayrton fazia ressaltar que o pacto se referia à zona de emfreagem na entrada na curva, mas cada motorista pode interpretar isso à vontade dele, porque ele é que define essa zona para si. O Prost compreendeu a situação à maneira dele, e certo da vantagem entrava na curva Tosa como o “professor na sala de aulas”, muito mais descansado do que o teria feito se não houvesse aquele pacto desgraçado, e freava antes do que era necessário. Isso foi um erro, porque detrás dele estava o brasileiro que já se tinha arrependido de ter feito um pacto qualquer. Sofria conduzindo atrás do Prost, porque aquilo era uma limitação, “conduzir com todos os outros”, tudo aquilo que o carácter dele não suportava. Posso ultrapassá-lo antes da zona de emfreagem – descobriram os sensos do Senna que não conheciam a espera e foram mais rápidos do que ele próprio. A maneira de conduzir do Prost dava-lhe essa possibilidade e também o exigia de certa forma, porque o Senna estava obrigado, no pleno aumento da velocidade, de ultrapassar o Prost ou frear como louco arriscando de incomodar perigosamente a todos que vinham atrás dele. O Senna explicava-o mais tarde:
“Tive
que fazer para a autoproteção, porque ele freou tão cedo que os outros teriam
caido sobre nós, se eu não tivesse passado.”
Além
disso, esta situação não está isolada. O Senna lamentava-se com frequência
dos motoristas que, freando demasiado cedo, de repente bloqueassem aos outros
atrás deles. Ele achava essas situações extremamente perigosas.
Imola 1989
Foi assim que aconteceu que o Senna ficou primeiro apesar do trato, para
o maior assombro do Prost, um espanto verdadeiro. Sentiu-se em perigo. O Ayrton
compreendeu isso, viu que tinha perturbado o equilíbrio do Prost. Respeitava
com sinceridade os sentimentos do outro homem, estava consciente da imprecisão
do trato e sabia que o Alan tinha muitas razões para se sentir enganado, por
isso dessistiu dos príncipios dele e pediu-lhe desculpa.
Sem
conhecer todos os detalhes do trato entre o Prost e o Senna, aqui não podemos
julgar quanta culpa tinha o Ayrton. À base dos dados accesíveis podia-se
concluir que o Ayrton fiz um erro na paixão de lutar. Simplesmente não
aguentou sem aproveitar a oportunidade. Mas isso estaria certo só se tivessem
definido exactamente os pontos até os quais não deviam atacar um ao outro, e
parece que isso não era o caso. É um facto também que este trato não estava
em vigor só em Imola ’89. Ele era uma ideia do Prost e os dois motoristas
praticavam-no havia bastante tempo, de maneira diferente. Se se davam bem, o
trato estava em vigor, se não, não davam por ele (quer dizer que o trato não
era uma coisa sagrada como se podia concluir segundo a reacção do Prost).
Brazil 1990
Se
supusêssemos que o Ayrton tivesse feito um erro na pista, Prost tê-lo-ia feito
fora dela com certeza, porque seja como for este conflicto teria de ser
resolvido de maneira como foi feito: entre eles. Mas o desejo do Prost de
castigar o aluno desobediente foi demasiado grande. Pegou naquilo que noutra
ocasião teria passado desapercebido, como se fosse uma arma. Toda a frustração
do Prost surgiu à luz do dia. Ele aguentava com muita dificuldade o facto de o
Senna não ser o que ele esperava que fosse – o segundo violino. Ele fez tanto
barulho que até o Ron Dennis teve que intervir, assustado de que “a equipa
dos sonhos” se lhe ia desfazendo. Oprimiram o Senna de todos lados para que
pedisse desculpa ao Prost por forma de este se calmar. Ninguém seria capaz de
convencer o Ayrton para fazer uma coisa parecida, porque ele não se sentia culpável,
se ele próprio não tivesse sentido a desharmonia que surgiu daquela situação
e ficou consciente que a competição não continuaria sem trazer a harmonia de
volta. Por isso pediu desculpa ao Prost e logo ficou óbvio que tinha feito um
erro, porque a desculpa dele não foi aceite com a mesma intenção, no desejo
de normalizar as coisas, senão como uma pública confissão da culpa (e já
sabemos a regra; uma vez culpável, culpável para sempre!).
Só
uns dias depois era o turno do Ayrton para ficar mudo de assombro e espanto.
“O Senna pediu-me desulpas em lágrimas!” “Não quero ter mais nada com
ele, ele não é sinceiro!” Foram os títulos que lhe bateram na cara da
primeira página dos jornais franceses. Essa tendência desgraçada do Prost
para fazer política e bater papo feriu desta vez o brasileiro sóbrio e
discreto profundamente. Retirou-se sem dizer palavra. O seu muro imaginário era
maior do que antes. Se o francês tivesse mais delicadeza, nunca teriam voltado
a ser tão grandes inimigos. Em relação a isto, ele disse uma vez: “Faz
muito tempo que perdi o respeito ao Prost.”
O
Prost não gostava nada de ser empurrado e obrigado de mudar o estilo de
conduzir, sempre reagia da mesma forma ao ver o nariz do bólide do Senna
aproximando-se-lhe na curva. Logo tentava fechar a passagem sem olhar pelas
consequências. Isso deu em Suzuki ’89 e Suzuki ’90, as consequências mais
conhecidas da rivalidade entre o Prost e o Senna.
O
Senna conheceu o Prost e as reacções dele muito bem. Pensava precisamente
nelas quando disse esta frase misteriosa antes da corrida em Suzuki ’90: “Talvez
amanhã seja o campeão antes de a corrida acabar.”
Foi
isso mesmo, no domingo o Prost fechou a passagem ao Senna apressadamente porque
não esperava mesmo que o Senna atacasse LOGO, senão na primeira curva, não
chegando ao pensamento que com isto ia eliminar da luta a si próprio. Ele
pensou demasiado em como fugir do brasileiro logo no começo porque via nisso a
maior vantagem dele – ele tinha o carro melhor.
Leiam agora com atenção estas frases que o Ayrton disse, algumas no
mesmo dia depois da corrida (assediado pelos jornalistas no final da tarde,
insistindo para lhe fazer confessar que eliminou o Prost a propósito), e outras
só um ano mais tarde quando permitiu a si próprio de dizer o que sentia.
Anotaram com muito cuidado que usou palavrões em abundância, porque o
Ayrton (como todos nós), às vezes, quando a ocasião na vida o exigia,
empregava as palavras grosseiras.
Foi
assim que o Ayrton tentou explicar o choque em Suzuki 1990:
“O Prost sabe muito bem que sempre conduzo quanto dá. Foi um erro
dele de me ter bloqueado o caminho. Primeiro me fez acreditar que me deixava
bastante espaço, e depois me bloqueou. Ele devia compreender que eu tinha maior
aceleração.
Ele fiz um erro quando
não deu por mim. Arriscou e não lhe correu bem. O Prost simplesmente
enganou-se. Sou eu quem é responsável por ele?
“Se sempre quando tratarem de fazer o seu trabalho com limpeza e honestidade, (...) o sistema e os outros que só querem aproveitar a situação, que podem fazer? Ficar por detrás e dizer, obrigado, sim, obrigado? Não, o homem devia lutar por uma coisa correcta. E eu sentia mesmo que estava lutando por uma coisa correcta. Por isso me (...) no inverno (...) quando tinha conqvistado o pole. Eu lhes digo, se noano passado o pole tivesse estado do lado correcto, não teria acontecido nada. Eu teria tido o começo melhor. Tudo por culpa de uma decisão má, e todos sabemos porque. O resultado daquilo foi a primeira curva. Eu contribui a isso, sim. Mas não foi responsabilidade minha.“ **
E
num livro ficou escrito que uma vez o Senna responedeu à pergunta porque não
tinha tentado de impedir o choque freando: “E que tem de injusto no desejo de ganhar?”
Prost watching Senna
Que podemos dizer ainda para as famosas corridas em Suzuki? Podiam ter
sido os maiores duelos desportivos no sentido mais positivo porque os
protagonistas delas foram uns desportistas excelentes, se não tivessem sido
estragadas pela política, porque o Prost não era um combatente solitário como
o Senna, às costas dele estava o sistema.
1991
- INTERLAGOS SOB A CHUVA
O ano ’91 trouxe ao Senna o terceiro título. Quer dizer que foi um ano
de grande êxito, mas quando olharmos mais de perto, vemos quantos esforços
extraodinários precisava fazer o Ayrton para conquistar esse título. Mas havia
uma circunstância atenuante a partir de 1990. Foi quando lhe deram como colega
da equipa ao Gerhard Berger, o homem
que revelou ser o Hefestião dele ***
( o Prost fugiu do brasileiro maluco para o Ferrari). O temperamento bom e
despreocupado do homem de Tirol atraiu o Ayrton que em fim podia dizer que tinha
encontrado um amigo entre os colegas. Com certeza que o apoio dado pelo Gerhard
na pista e fora dela fez o caminho para o título mais fácil. Ayrton agradeceu
à maneira dele. A victória em Suzuki no fim do ano não foi oferecida, ele
mereceu-a. O Senna comecou a ir mais devagar antes do final deixando a victória
ao Berger.
Senna & Berger, Suzuka 1991
Esse ano o Ayrton viu que o McLaren já não funcionava tão
perfeitamente para ele poder estar satisfeito. Aconteciam os erros que perdiam
os pontos sem necessidade – os tempos grandes já tinham passado. Esse ano o
Alan Prost não esteve no primeiro plano como concorrente, e o compatriota de
Prost, um alto funcionário da FIA, foi demitido do posto, de forma que
o Senna lutava mais em contra do Williams, melhor cada dia nas mãos do
brusco Mansell, e com os problemas no próprio carro dele, e menos contra as
autoridades.
Vamos
compreender melhor como o Ayrton sabia enfrentar os problemas imprevisíveis que
surgiam durante as corridas, e quanta firmeza mental era capaz de pôr nelas, se
fizermos um breve resume das corridas em Interlagos. porque o ano ’91 –
aquilo era Interlagos. A primeira victória em casa e provávalmente a maior
victória do Ayrton Senna em geral (com exepção da corrida em Donington, em
1993, que tem a mesma importância mais por outros motivos).
Foi
em Interlagos que o Ayrton Senna literalmente conseguiu vencer os problemas no
carro extremamente difíceis, surgindo um após outro, unicamente
com a quase super-humana força da vontade dele. Aquilo foi a victória completa
do espírito sobre a matéria.
“Eu
sentia que fosse obrigação minha ganhar no Brasil”
– declarou mais tarde o Ayrton. As palavras muito simples, mas fazem imaginar
todo o drama dessa corrida, durante da qual, tinha que conduzir com uma mão,
segurando com outra a alavanca para mudar as marchas, só para ficar sem
“É imensamente difícil conduzir na sexta tanto tempo. Quando a 300 km/h a gente tem que frear até 70 km/h, sem poder mudar a marcha, o motor ainda puxa em frente com plena força. Muitas vezes estive a ponto de deslizar”, ele próprio contou sobre isso.
Além disso havia o perigo constante de o motor
se desligar; naquela situação o Senna tinha que mudar por completo a maneira
de conduzir, esquecer-se das dores terríveis nos músculos, que tomavam posse
dele como a maré e em cima de tudo isso olhar para a pista que estava molhada.
À primeira vista parece que naquela altura a chuva não era o aliado dele, mas
se olharmos mais de perto, vemos que sim o era. Porque o Patrese no segundo
Williams (o Mansell acabou fora) teria tentado atacar, se não houvesse chuva,
com todas as outras condições. E quando a gente tem o Senna e a chuva em
frente, então o segundo lugar é o primeiro.
E
o Ayrton esforçava-se para seguir em frente:
“Eu
dizia-me sem parar que estava tudo bem, que eu podia fazer isso, que tudo ia dar
certo…”
Aqui
salta aos olhos de novo o grande parecido com o Alexandre. O Rei da Macedónia
também sabia obrigar o corpo para lhe servir, pela força do espírito. Achava
que no final era mais importante dominar a si próprio que aos outros.
E
o Ayrton disse: “Às vezes quero vencer
os oponentes, mas com mais frequência estou lutando contra mim. Isso me dá
mais prazer.”
Foi
assim que lutava contra ele próprio em Interlagos, pedindo força com a breve
oração dele: “Meu Deus, meu Deus, não me abandone…”
“Eu
acredito que Deus me deu esta vitória”,
confiou-nos mais tarde.
E
quando passou primeiro a linha do final ante todo o Brasil, passou também a
fronteira dos mortais. No bólide parado uns metros atrás da linha o motorista
ficou sentado com impotência, o motorista que tirou de si e do carro tudo o que
um homem era capaz de tirar (ou ainda um pouco mais). Ele estava no vazio
naquele momento, e a única realidade era a dor rasgante que finalmente podia
romper. Foi ajudado ao sair do bólide porque havia mais uma coisa para fazer.
Tinha que subir ao trono do campeão. A partir desse momento tem ficado naquele
trono para sempre, para a multidão dos adeptos fanáticos dele. Mudou-se para o
lugar onde moravam os deuses. A morte que o levou sómente pôs o selo nesta
condição: ele fez-se imortal. Fomos capazes de sermos testemunhas de como se
criavam os deuses entre os homens. Os hérois imortais gregos e romanos
faziam-se da forma parecida, e o já mencionado Alexandre, o Rei da Macedónia,
o líder de todos os gregos, fizera-se uma deidade quando ainda vivia, em frente
da estátua dele ofereciam-se os sacrifícios e foi porque sabia fazer victórias
das batalhas perdidas.
“De
muitas formas nós somos um sonho para a gente, não somos uma realidade. Isso dá
motivação positiva à gente. Isso também mostra como se pode influenciar à
gente, e quando alguém se esforça para lhes dar qualquer coisa, isso não é
nada em comparação com aquilo que ele é nos pensamentos e nos sonhos deles. E
isto é uma coisa especial mesmo, uma coisa muito, muito especial para mim”
– foram as palavras do Ayrton sobre esse tema.
Em
Interlagos existe uma imagem que comove o coração da gente com uma dor
especial. Eu sei que vai parecer contradictório, mas não a posso omitir. Aliás,
quando o coitado do Ayrton, morto de cansaço, sai do carro oficial, pode-se ver
por um momento a cara e os olhos dele. Naquela altura ele era feliz, ele próprio
o disse. Pois era feliz mesmo, feliz pela maneira incrível da qual ganhou,
feliz pelo sonho realizado dos torcedores inumeráveis, feliz por ele próprio,
mas mesmo assim aquela não foi a cara de um homem feliz, foi a cara de um homem
extremamente só, a cara que revela a necessidade de compartir com alguém que o
compreendesse aquele momento quase insuportável. Os olhos procurando uma pessoa
que fosse tão íntima e especial para poder pôr a cabeça no ombro dela e
encontrar descanso pelo menos por um segundo. O facto de ali estar o ombro do
pai dele não diminui, senão acentua a solidão, porque a família não estava
fora, eles eram parte do Ayrton. Pois o Ayrton procurava, durante toda a vida,
uma alma gêmea dele que correspondesse aos ideais que levava no coração e que
o compreendesse, e foi uma procura inútil. Procurando encontrou muitas pessoas
que o amavam, mas o amor não tem que incluir o entendimento. Foi por causa
disso que, naquele momento em Interlagos, entre a multidão imensa dos adeptos,
onde a gente o queria tanto que daria a vida por ele sem pensar, o Ayrton da
Silva estava completamente só, só com os pensamentos dele. Não havia ninguém
para o seguir nesses pensamentos.
Os
desejos mais íntimos dele nunca se realizaram.
“Um
dia vou ter mulher e filhos e espero que os saiba ajudar e ensinar as experiências
que juntei”, confiou
quando lhe perguntaram qual era o sonho dele. Tinha mais um desejo (sabia que
este sempre ia ficar só um desejo), uma visão do futuro dele: “Um dia vou-me deixar pagar tudo, nota por nota, e então vou viver só
de acordo com a natureza.”
E
uma coisa profissional? Aqui também havia um desejo: queria acabar a carreira
dele trabalhando pelo Ferrari: “Mesmo
se o carro do Ferrari fosse mais lento que o mais pequeno Volkswagen, eu queria
conduzi-lo no meu último começo, na minha última volta, na minha última
corrida. O Ferrari é o mito da F-1, ele é a tradição, a alma, a paixão.”
Esses
foram os desejos mais íntimos do Ayrton Senna, terrívelmente modestas para um
homem que podia desejar e realizar tudo o que este mundo oferecia. Mas parece
que ele não era deste mundo.
Mexico 1991
Há
mais uma coisa em 1991 que salta nos olhos. O Ayrton foi ferido várias vezes
durante esse ano. O acidente em México parece uma advertência espantosa visto
em retrospectiva. O olhar para a roda arrancada com a barra faz lembrar uma
maldita roda parecida uns anos mais tarde. Quer dizer que tudo que passou mais
tarde podia passar sempre, só que ainda não tinha chegado a hora, o Ayrton
ainda não tinha cumprido a missão dele até o final.
1992
- O ANO SEM ESPERANÇA
Esse
ano mostrou de forma definitiva que o melhor carro era o Williams. Dentro estava
sentado o Nigel Mansell a quem se deve reconhecer que se esforçava mais do que
ninguém a bater o Senna lá fora na pista. Esse ano ele conseguiu. Nem sequer
um motorista como Senna pôde lutar contra a vantagem técnica do Williams.
“Isso
foi inútil desde o princípio”–
confessou o Senna, mas certas corridas lhe pertenciam e ficaram na memória.
Como o duelo com o Mansell em Monaco. Em geral as corridas em Monaco foram só
dele. Podemos ver algumas partes delas nos vídeos tirados do bólide. Olhando
esses vídeos começamos a compreender a afirmação que o Ayrton conduzia mais
rápido do que ele próprio, quer dizer, do carro dele, porque ele conduzia a
dois níveis; ao mesmo tempo estava no carro físicamente, e diante do carro nos
pensamentos. Dessa maneira voltava a si próprio no final. Por isso era possível
que lhe acontecessem coisas extraordinarias. Uma vez descreveu assi o que tinha
vivido durante o aquecimento em Monaco 1990:
“De
repente eu podia-me ver desde fora, sentado no carro. À volta de carro e de mim
estava uma linha branca, como se fosse uma onda. Vi nela a força e a protecção.”
Pouca
gente sabe que intensa deve ser a concentração para uma experiência como esta,
e para um conductor de corridas, isso é uma característica que não tem preço.
Para nós, os espectadores, trata-se apenas de um homem e de uma máquina
funcionando em acordo e ficamos excitados só com as situações extraordinárias
que quebram aquele funcionamento. E cada situação extraordinária é uma
pancada nos nervos do motorista, é fazer de novo o mesmo exame. Por isso é que
todos os conductores de corridas têem uma construção mental especial, e um
homem ordinário nunca experimenta essa pressão na vida normal.
O
Ayrton tentou descrever várias vezes as sensações durante uma corrida:
“Cada
nérvo do meu corpo é sensível até os últimos limites, a cabeça funciona
como em nenhuma outra situação. Posso sentir o cheiro da grama na margem da
pista, das pedras na zona de saltar da pista e do asfalto. Também tomo a sério
o cheiro dos freios quando eu os calcar à grande velocidade. Ouço o número
das voltas que dá o motor tão exactamente que nem sequer preciso das indicações
na cabina. Os sentidos do corpo recebem cada vibração do carro. Todas as
informações deste tipo acudem a cabeça ao mesmo tempo, mas ainda as posso
diferenciar, compreender e interpretar de forma individual. Isso é um
sentimento incrível e fascinante – você é uma parte do absoluto.”
Senna & Mansell - Monte Carlo 1992
Em
verdade, as células nervais dele funcionavam da maneira especial, e em Monaco
de forma mais impressionante. Ele gostava muito de ganhar ali. Ele igualou ali
em 1992 o recorde do G. Hill, e já no ano seguinte 1993, ele fez um novo
recorde, o recorde dele próprio – 6 victórias e 5 na série.
Porque
o Ayrton gostava de ganhar em Monaco? A pista ai é extremamente exigente e isso
o motivava, ele fazia um teste para ele próprio. Descreveu-o assim:
“Monaco
é uma pista fantástica, é o maior desafio em todo o campeonato, porque se
conduz bastante rápido e não tem espaço algum para fazer um erro qualquer.
Simplesmente porque não tem espaço. Monaco exige uma boa preparação física,
porque depois de uma curva segue a outra; e psíquica, porque a gente tem que
ter cuidado, tanta precisão todo o tempo. Os muros formam a fronteira da
gente…”
Além disso o Ayrton não gostava de estar no famoso ducado, o que as pessoas não podiam compreender, embora tudo fosse muito simples. Monaco com a sua cidade de jogos, Monte Carlo, é uma construção artificial, feita para os ricos, para os membros indolentes do jet-set; é a morada da vaidade. Daquela parte do globo terrestre como se fosse tirada toda a miséria, pobreza, doença e velhice. Nesse pequeno estado, que serve para os ricos ficarem mais ricos ainda, fecham-se os olhos à realidade da vida. E se havia alguém que não fechava os olhos à miséria da realidade, era o Ayrton Senna. A única casa verdadeira dele estava no Brasil, e o Brasil é o sinónimo da pobreza, e por isso eles não podiam compreender porque ele, multimilhonário, tem casa ali, enquanto podia viver despreocupado num lugar lindíssimo como Monte Carlo! A paixão que mostrou explicando a actitude dele perante a vida, quando lhe perguntaram por isso uma vez, foi mesmo chocante para eles. No último ano 1994 disse antes de Imola:
“Eu
queria ir para Monte Carlo quanto mais tarde possível – demasiado cemento,
demasiado barulho, demasiada confusão e demasiado papo.”
Belgium 1992
A corrida em Monaco em 1994 foi celebrada sem ele. A primeira posição
no começo ficou vazia. O país elegante, alheio ao coração do Ayrton ficou
sem o ídolo e sem mudar no mais mínimo o seu estilo da vida no cemento. Noutro
lugar qualquer coisa mudou: nos corações da muita gente para onde o Ayrton se
mudou para sempre.
Embora
se não soubesse, o ano ’93 foi o último para o Ayrton Senna e foi muito
exigente. Esse ano o Ayrton procurava com ardor a melhor maneira para seguir em
frente. Conduzia para o McLaren sem um contrato permanente, da corrida à
corrida seguia lutando nos lados diferentes. Seguia com os esforços para chegar
até o melhor carro de momento, o Williams naquela altura, e fazia-o com coragem
(tinha que lutar até pela própria morte dele!). O grande desejo que tinha para
conduzir de novo um carro concorrente vê-se no facto de ele oferecer ao Frank
Williams (que tinha fama de avaro) que ia conduzir gratis o ano ’93.
Ironicamente, a única coisa que conseguiu com isso foi que o Frank Williams já
nem pensava em tomar a sério o campeão Mansell nem de lhe pagar a importância
que exigia, de forma que o Mansell, amargado, deixou a F-1 e foi-se para os
Estados Unidos.
O
Ayrton seguia trabalhando noutras coisas, além de se dedicar quanto mais podia
à F-1, porque fazia muito tempo que ele não vivia só para a F-1 como se podia
pensar olhando a constante entrega dele, 100%, àquele desporto. F-1 foi a paixão
dele, o meio pelo qual se exprimia melhor, mas além disso tinha muitos outros
trabalhos para não perder ânimo porque às vezes a situação na F1 era tal
que se via obrigado a dizer estas palavras: “Mas
esquece, estou chegando mais perto do ponto onde não me importo…”
Lutava
contra os momentos da desesperação desta maneira:
“Eu experimentei isso várias vezes durante a minha carreira e aprendi com isso, aprendi fazer frente a isso. Uma maneira de o enfrentar é de fazer coisas diferentes, ter vários projectos e olhar como se desenvolvem. Porque então eles voltam a ser uma motivação, uma fonte da satisfação e dos bons sentimentos. Vocês podem transformar isso em energia para continuar. Precisam dos planos para o futuro, as coisas que estão vendo crescer de forma gradual, que lhes dão alegria. Se não têem isso e só estão à espera que venha uma coisa do céu, então é muito mais difícil. Precisam das coisas diferentes para, se uma coisa não correr bem, poderem olhar para a outra, e talvez, com o tempo, a primeira coisa fique melhor. Devem criar novos negócios e investir no futuro. É a única forma de viver para o futuro. “
Ele
assegurou o futuro dos negócios dele. No começo de ’94 informou:
“1994
vai ser o ano quando o Ayrton Senna Group vai ficar verdadeiramente independente
e dali todos os meus negócios vão desenvolver e existir independentemente da
minha carreira do conductor de corridas.”
Infelizmente
foi assim mesmo.
Ayrton Senna after winning in Interlagos 1993
O
ano ’93 parece-nos como um breve resume de toda a carreira do Ayrton, como se
fossem apertados num só ano todos os momentos importantes dos anos anteriores,
como se ele tivesse de viver tudo de novo porque chegava a última hora dele.
Tinha um carro inferior e não podia conquistar o campeonato apesar do grande
esforço. Em fim, a conquista de mais um título já não tinha muita importância
porque a missão do Ayrton não foi a de conquistar o maior número dos
campeonatos da F-1 na história da era moderna da F-1.
Em
1993 chegou o tempo para o Ayrton ganhar doutra maneira. “Tem agora a sensação
de que certas coisas que aconteceram em 1993 fossem predestinadas?”,
perguntaram-lhe no fim do ano, e ele respondeu: “Sim,
acredito mesmo que foram predestinadas.”
Em
verdade, alguns acontecimentos nesse ano foram predestinados para mostrarem as
coisas na luz verdadeira e de certa forma abrandirem a amargura que lhe pesava
no coração tanto tempo. Primeiro ganhou outra vez em Interlagos,
inesperadamente, e festejou aquela victória “no alto astral” (as próprias
palavras dele).
Em
geral ele não se importava muito pelas festas. Gostava muito e gozava de poder
mostrar o que sabia e o que era capaz de fazer, mas enquanto passava a linha do
final, teria dito “acabou-se” na mente dele, e já começava a pensar à próxima
corrida que esperava por ele. Não ligava muito pelos parabéns, pelas festas,
nem por tudo o que ia com isso. Ele estava contente, claro, mas o festejar ere
mais para todos aqueles que tinham participado na realização daquela victória,
e para os torcedores – um presente para eles – para ficarem felizes por
causa disso.
Vai
na mesma para todos os copos, victórias e títulos. Porém não foram no
primeiro lugar para ele próprio, embora isso parecesse sem sentido à primeira
vista., porque então que era importante para o Ayrton? Que foi a recompensa
verdadeira que só pertencia a ele? Ele disse-nos isso também:
Two legends of F-1 - Ayrton and Juan Manuel Fangio, Interlagos 1993
“Nos
segundos antes do começo, quando o motor já está ligado, deixo-me ir, de
certa forma me deixo cair. Todo o pensamento consciente para, o resto corre de
forma bastante natural, da sua própria vontade. Há um ritmo, algo como a
melodia perfeita. Não sempre, mas sempre existe a eterna procura dela. Quando a
encontrar, então conduzo na segunda dimensão. Controladamente, mas com
liberdade absoluta, estou conduzindo só com os meus, para assim dizer,
instintos inatos. Estou no presente, mas também estou diante de mim no tempo.
Com a intuição sinto muito mais do que posso calcular. Infelizmente, são
momentos raros, mas são maravilhosos.”
Foi
isso o que procurava mais uma vez e mais uma vez; isso foi a recompensa
verdadeira para ele se dar sem reserva. A recompensa que sempre lhe mostrava de
novo que a obra dele foi aceite e amada. Por
isso podemos pôr uma ao lado da outra, as declarações opostas do Ayrton, sem
contradicções. Uma vez dizia - As estatísticas não me interessam. O meu
objectivo não é bater o recorde do Fangio, ele não poderá ser alcançado.
E outra vez - Só fico contente com as victórias. Ser o segundo quer dizer ser
o primeiro dos que perdem. Estas declarações seriam contradictórias em
absoluto sem perceber a alma do Ayrton e as paixões que vivia. Estas supostas
contradicções são típicas para as pessoas obrigadas de viver de acordo com
as regras geralmente aceites, e ao mesmo tempo ficar fieis as suas próprias
regras.
Mas
no ano de 1993 o Ayrton festejou a victória em Interlagos como devia festejar,
à noite, com barulho, até a madrugada, e acabava de conhecer a “menina dos
sonhos” que no último ano da vida lhe trouxe a ilusão de ter encontrado o
amor verdadeiro. Que tudo isso fosse uma ilusão ficou comprovado no futuro. Ele
tinha que reparar em que aquela menina ainda fosse uma miuda no espírito, mas a
figura dela ficou-lhe talhada no coração, e a simplicidade dela era um
descanso para ele. No seu estilo, ele fez-se responsável por ela, esperando que
com o tempo ela aprendesse a apreciar os valores verdadeiros na vida, e que
juntos pudessem fazer planos para o futuro. Além de simples, Adriane mostrava
ser ingênua, e ele devia ter medo de tanta ingenuidade. Uns dias antes de
morrer disse:
“Mesmo
quando você está ao lado da mulher amada, é capaz de pensar que ela podia
fazer você infeliz no futuro. A relação entre o homem e a mulher é a coisa
mais antiga que existe no gênero humano, e ainda não existe uma fórmula que
garanta o amor, a paz e o êxito da relação. Por isso é preciso avaliar a
relação dia após dia. Isso não é apenas um sonho da maioria de nós, é uma
realidade que temos que apreciar.”
Embora
tivesse educado a Adriane, não tinha ciume como escreviam nem lhe proibia de
trabalhar como modelo. Ele apenas conhecia as condições naquela profissão e
queria protegê-la da humilhação. Ela própria falava sobre isso no livro dela
e foi a melhor testemunha de que não tinha compreendido o Ayrton por completo.
Ela só dizia que sim sem perceber nada. Isso vê-se melhor quando ele a deixou
de decidir sozinha e fazer uma reportagem para a revista “Caras”. Adriane
deixou-se com frivolidade nas mãos das pessoas que aproveitaram com muita
sotileza o que lhes foi oferecido. As fotografias tiradas estão exactamente na
fronteira do que chamamos “de bom gosto”. Não a passaram, mas aludem
demasiado a certas coisas (Adriane que estava apaixonada por ela própria não
era capaz de compreender as linhas finas que separavam o bom gosto do mau gosto).
Podem
imaginar a surpresa dela ao ver a reacção do Ayrton, depois de ele ter visto o
resultado final. Não compreendeu nem uma só palavra do que ele lhe tentava
explicar. Compreendeu apenas uma coisa: que ele estava zangado com ela, e ela
via-se tão bem naquelas fotografias lindíssimas… Não percebia a impressão
geral e as alusões que aquilo deixava.
Adriane Galisteu at Ayrton's funeral
Que
pôde fazer o Ayrton, ao ver que não a podia deixar sozinha até ela aprender
certos comportamentos normais para as pessoas mais próximas dele? Ele pôs-se a
corrigir o que já estava mal feito. Enviou para as Caras as fotografias que ele
próprio escolheu, as fotografias bonitas e artistícas deles dois onde pareciam
um casal. Teve que aproveitar a personalidade dele para apresentar a Adriane
como a namorada digna dele. E pediu a ela de arranjar os diapositivos que fez
sozinha, queria controlar aquelas imagens ambiguas. Isso mostra quanto gostou da
“pequenina”(o nome que ele lhe deu) e que queria que ela
fosse a mulher dele. Pediu aqueles diapositivos por ter pensado no futuro, no
futuro que nunca viu, e que nos mostrou que a ingenuidade e frivolidade da
Adriane deviam ter sido um traço de carácter. Porque ela
permitiu
que tudo aquilo a que se aludia nas fotografias em Caras fosse levado até um
final grosseiro depois da morte do Ayrton. Fez-se humilhar a si própria
gravemente, e assim humilhou o Ayrton também, a única pessoa que em verdade o
conseguiu ferir mesmo após a morte dele. Um olhar para as fotografias dela em
Playboy é mesmo triste. Vendo estas fotografias, temos que perguntar, como é
que nem sequer um eco do Ayrton não ficou na alma dela, como é que se revelou
tão vazia? Sem querer ser cínica, tenho que chegar à conclusão que o papel
da Adriane na vida do Ayrton foi apenas ter sido o “descanso do guerreiro”,
nos últimos meses dele, porque senão, como foi possível que ela se esquecesse
de tudo que ele lhe dizia durante 4 horas numa noite, tentando-lhe explicar as
coisas? Não chegava para ela decorar? Qual foi a influência nela depois da
morte dele, ou talvez já tivesse tudo isto em si, e então o resultado é ainda
pior.
Porém,
talvez não fosse preciso as coisas acontecerem assim, porque se a
“pequenina” tivesse recebido um apoio oficial do dinheiro do Ayrton,
ter-se-ia evitado a maior humilhação, ou pelo menos não havia desculpa para
isso. Com certeza que o Ayrton assim o queria, seja como for, porque a Adriane
era a mulher que ele amava e era preciso respeitar esse facto porque ninguém de
nós sabe onde teriam ido parar as coisas se o Ayrton ainda estivesse vivo.
Em
1993 a Adriane acompanhava o Ayrton nas corridas com frequência, mas não
esteve presente na mais importante, naquela em Donington. E foi ali que ocorreu
uma das maiores victórias dele. Aquela corrida foi uma satisfação em todos os
aspectos. Sabemos que não podemos dirigir sozinhos a nossa vida, mas quando
falamos de Donington, parece-nos que o Ayrton a dirigiu, porque as circunstâncias
coicidiram de tal maneira que ele pôde mostrar a todos, e também a ele próprio,
as capacidades que tinha.
“Essa
corrida disse-me tudo. Foi isso que eu queria provar a mim próprio”
– disse. Naquela altura ninguém sabia que se tratava da canção de cisne
dele.
Donington 1993
O
maior oponente dele foi outra vez o Prost, sentado no melhor carro, tinha
ocupado o Williams só para ele, assegurando-se com a cláusula de que o Senna não
pudesse ser o colega da equipa dele nesse ano. Desta forma amarrou o Ayrton ao
McLaren, já inconcorrente. Foi nesta proporção das forças que comecou a
corrida em Donington num domingo frio, com chuva, em ’93.
A
chuva não podia faltar nesse espectáculo. E não era só chover e pronto:
pneus para a chuva e vamos andando. Chovia e deixava de chover – a pista
secava-se. Então chovia muito, e depois pouco, certas partes da pista
secavam-se de novo. Imaginem o Senna nesse cenário. Como funcionavam todos os
sentidos dele, como empregou todas as capacidades dele, isso foi uma arte. O repórter
da F–1 da Eslovênia chamou-o o “Poeta da Velocidade”. Foi aqui que ficou
comprovado este título.
“Genial,
fantástico, é puro Senna, o carro não interessa para nada!” – um exemplo
dos comentários da corrida, esta vez do ex-campeão da F-1, J. Hunt. Toda a
corrida foi absolutamente única desde o início até o final. Se o Prost
tivesse sido vencido uma vez, foi aqui mesmo, embora o Ayrton tentasse
dissimular este aspecto. Não queria profanar essa corrida fazendo dela apenas
uma vingança. Mas é indiscutível que era o turno do Prost de beber o copo de
amargura, à maneira seniana. Seguiu sendo o
Depois
desta corrida o gelo no coração do Senna comecou a derreter. Por isso foi possível
que dêsse a mão ao Prost no fim do ano com sinceridade. Chegou a hora para
isso.
“Apesar das nossas diferenças, dos problemas que tivemos, os dois somos
desportistas, os dois somos campeões mundiais, os dois gostamos de correr. Acho
que o que aconteceu devia ficar assim mesmo. Isso mostrou tanto os meus
sentimentos como os sentimentos dele. “
O
Ayrton falava assim dos sentimentos dele, e em Imola ’94, pouco tempo antes de
morrer, despediu-se do rival durante muitos anos, e do inimigo verdadeiro às
vezes, de melhor forma possível:
Foi
por isso mesmo que, apesar de tudo, a figura do Prost ao lado do corpo morto do
Ayrton foi a figura de um amigo.
Senna & Prost - England 1993
O
Ayrton deitou fora do coração dele mais uma grande inimizade, foi ainda em
Dezembro de 1991, na outorgação anual dos prémios da FISA em Paris, quando
ofereceu o capacete dele ao Balestre, o ex-funcionário da FISA (o mesmo que o
impediu de subir ao trono em Suzuki 1989).
“Tivemos
diferenças no passado, Jean-Marie. Não quero voltar a elas. Sei que você
gostaria de ter uma coisa pessoal de mim. Enquanto a mim, hoje estou tentando
acabar com todos os malentendidos entre nós. O que aconteceu no passado, já é
um passado mesmo”,
disse o Ayrton naquela altura.
Ele
simplesmente não podia odiar e nunca se vingava, ainda que muitos pensassem que
não tinha sido assim. Às vezes lhe acontecia de reagir com raiva mesmo ali
onde não havia injustiça alguma, e às vezes reagia um momento demasiado cedo,
antes de os fragmentos se comporem e formarem uma unidade que dava a imagem
verdadeira. Isso acontecia quando ele se via impedido de fazer alguma coisa onde
estava 100% convencido de que estava certo. Ele estava consciente dos defeitos
dele e tentava corrigi-los.
“Preciso
aprender a ter mais paciência”
– pensava, e numa entrevista, respondeu assim à pergunta – “Que queria
mudar em si próprio?”
“Talvez
que eu possa aceitar melhor como são as pessoas. É difícil aceitar certas
coisas, mas queria ser mais flexível com as pessoas no futuro, aceitar as
pessoas como elas são, algumas com as qualidades extraordinárias e outras com
os grandes defeitos. Mas mesmo como as pessoas são.”
Prestem
atenção: não quero que as pessoas me aceitem a mim, custe o que custar, tal
como eu sou, mas eu quero ser mais flexível e aceitar as pessoas como
elas são. Porque as pessoas tinham falta de delicadeza muitas vezes,
incomodavam-no estragando-lhe a concentração ou simplesmente atacavam-lhe
inoportunamente como por exemplo o adepto benévolo que lhe aconselhou num
restaurante, durante o jantar, sem ser invitado, que deixasse as corridas porque
podia morrer. E o Ayrton estava sentado no restaurante com a Adriane, a jantar,
precisamente para se esquecer dessas coisas, quer dizer, só queria viver como
uma pessoa normal por um momento.
Ele
próprio tinha muita delicadeza e sempre andava com cuidado de não incomodar os
outros sem muita necessidade. Ele poupava as pessoas e as coisas, só não
poupava ele próprio. Por isso a gente tinha que dar tudo de si no caso de se
encontrar ao lado dele nos certos momentos. Isso foi sentido melhor por todos
aqueles motoristas que tiveram a sorte (ou desgraça) de conduzir ao lado dele.
Era muito tolerante, mas só até os limites que estabelecia a estructura
equilibrada da alma dele. Se tivessem passado esses limites, ele reagia com
raiva, sem olhar pelas consequências, como aconteceu no caso do Irvine. A reacção
furiosa, provocada pelo atrevimento do irlandês, trouxe problemas e críticas
ao Senna, mas tudo aquilo hoje tem perdido o significado, embora fosse típico
dele. Ayrton não bateu o irlandês apenas como uma pessoa atrevida; foi um
golpe ao sistema com a sua indolência e hipocrisia.
“Nada justifica o facto de eu lhe ter batido e eu não me justifico, eu só digo que aquilo que aconteceu na corrida tinha sido absurdo de muitas formas diferentes. E ninguém fez nada, ninguém disse nada sobre isso, durante ou depois da corrida. Eu fui falar com ele e ele estava que nem um muro. Foi por ele que eu me pus furioso. Não podia aguentar porque o respeito é muito importante entre os condutores. O problema era que ele nem sequer queria pensar nisso, e ainda menos dizer que não estava certo”, – o Ayrton tentou explicá-lo desta forma naquela altura.
E
o sistema mostrou a cara verdadeira de novo: Senna saiu mal, e não se falava do
comportamento do Irvine que tinha provocado o barulho inteiro. Isso é característico
também, julgam-se as consequências e não as causas, sempre quando se tratar
do Senna. A incompreensão é muito grande e não apenas perante autoridades senão
também entre os jornalistas, sobretudo os ingleses com os quais o Ayrton lutava
durante toda a carreira. Com eles nem queria falar daquele incidente e explicou
o porquê: “Porque nunca se publica o que digo em verdade.” E quando os
jornalistas ingleses queriam provocá-lo de novo, não ficou calado: “Seja
como for, vocês não sabem nada…”, replicou-lhes. Aqui também se pode
ver que grande era a incompreensão à volta do Ayrton, mas apesar daquilo o
Eddie seria capaz de se lembrar do Grande Brasileiro sem amargura, só se
fizesse um esforço para aprender a lição do fair-play
que este lhe tinha dado. Mas infelizmente durante todos estes anos depois da
morte do Senna, cada ano vê-se melhor que o irlandês não faz muito esforço,
além disso parece como se cuidasse a propósito da reputação adquirida graças
à pancada do Senna.
Ayrton's last victory for McLaren - Adelaide 1993
E
o Grande Brasileiro acabou o ano 1993 com outra victória que trouxe a equipa
McLaren à primeira posição na história da F-1. Com 104 victórias foram os
primeiros antes do Ferrari. Podem imaginar uma prenda de despedida mais bonita
àquela equipa? Senna ia para o Williams de forma definitiva. O Prost já não o
podia impedir de forma que preferiu deixar as corridas com 4 títulos no bolso,
e o Ayrton estava entusiasmado como uma criança, à espera do ano seguinte. Em
fim lhe parecia que podia conduzir como o queria no espírito, quer dizer,
“mais rápido do que ele próprio”, e para isso precisava “um carro doutro
planeta”. Williams prometia de ser precisamente isso, mas o começo do ano
1994 mostrou logo que aquilo era mais uma ilusão do Ayrton.
“É
típico, assim que eu tinha chegado em Williams, eles estragam o carro…”
*
Adriane
Galisteu, “My life with Ayrton”, APA Publishing, Adelaide, página 34
**
Aqui
tive que citar as palavras de Ayrton com censura, porque todas as fontes accesíveis
para mim as expunham desta forma.
*** Um dos oficiais do Alexandre da Macedônia e o melhor amigo dele.