CRIADO
NO CÉU
(Made
In Heaven)
“Eu
apanho a minha boleia com o destino Com
vontade de jogar o meu papel Vivendo
com lembranças de mágoas Amando
com todo o coração Preciso
aprender a pagar o preço Eles
viram-me de cabeça para baixo Esperando
pelas possibilidades Não
vejo muitas à minha volta À
procura do meu objectivo Aceito
toda esta miséria Dando-lhe
a minha alma inteira Criado
no céu, criado no céu Tudo
foi predestinado Criado
no céu, criado no céu É
o que todos me dizem, espera e vai ver Isso
foi predestinado mesmo Era
tão óbvio Todos,
todos, todos me dizem assim Sim,
era óbvio Sim,
foi predestinado Escrito
nas estrelas... Escrito
nas estrelas...
|
I’m
taking my ride with destiny Willing
to play my part Living
with painful memories Loving
with all my heart I’m
having to learn to pay the price They’re
turning me upside down Waiting
for possibilities Don’t
see too many around I’m
playing my role in history Looking
to find my goal Taking
in all this misery But
giving it all my soul Made
in heaven, made in heaven It
was all meant to be Made
in heaven, made in heaven That’s
what everybody says, wait and see It
was really meant to see So
plain to see Everybody,
everybody, everybody tells me so Yes,
it was plain to see Yes
it was meant to be Written
in the stars... Written in the stars...
|
Letra:
Freddie Mercury
1994
No ano 1984 o Ayrton era novo e esforçava-se quanto podia para alcançar
os concorrentes, conduzindo um carro inconcorrente. Os jornalistas comparavam a
situação no começo de 1994 com a em 1984. Foi justa essa comparação?
Mesmo
naquela altura os jovens entusiastas pretendiam alcançar o concorrente (porque
desta vez havia só um), mas não conduziam os carros inconcorrentes, senão ao
contrário, “muito concorrentes”, de forma que parecia que tudo voltou a ser
uma “caça ao homem”. Quando iam apanhar o Senna? Evidentemente isso foi a
pergunta mais importante que estava entre linhas no cada artigo dos jornais, não
quem ganhava nesta ou naquela corrida, ou conquistava ou título, senão quando
o Senna vai ser vencido. Desta forma começou o que era mais difícil para os
nervos do Ayrton – a incerteza. Porque no lugar do carro “doutro planeta”,
deram-lhe um veículo muito maleável no qual não podia ter confiança nem por
um segundo.
Nas
duas primeiras corridas do ano ficou sem posição. Isso não era grave, quando
se tratar do Senna. E não teria sido, se não tivesse vindo a corrida em Imola,
porque ele não perdeu nada da excelência que tinha como motorista, três
primeiras posições nas 3 qualificações comprovam-no melhor. Mesmo em Imola,
apesar da muita dor na alma dele, forçou-se para separar a parte profissional e
dominá-la com perfeição. Teve a primeira posição no começo. Conseguiu
apertar o coração, quem sabe pela quanta vez, e é assim que ia morrer, de
coração apertado.
Ayrton at Pacific Grand Prix, Aida 1994
Com certeza já tinham reparado em que neste conto sobre o Ayrton, não
se falou em estatística em parte alguma. Talvez agora seja o momento para falar
nisso porque há um dado que não se pode omitir, e é o número das
conquistadas posições pole. A
primeira posição no começo consegue-se exclusivamente lá fora na pista. O
carro (que os mecânicos têem que deixar na perfeita condição) e o homem
decidem o resultado. Aqui não há política que amargava a vida do Ayrton com
tanta barbaridade até o último momento.
NO. DE CORRIDAS | NO. DE POSIÇÕES POLE | |
AYRTON
SE |
161 | 65 |
JIM CLARK | 72 |
33 |
ALAIN PROST |
199 |
33 |
NIGEL MANSELL |
185 |
32 |
JUAN-MANUEL FANGIO | 51 | 28 |
NIKI LAUDA | 171 | 24 |
NELSON PIQUET | 204 | 24 |
Quase
todos os nomes que vêem depois do nome do Ayrton pertencem aos múltiplos campeões
mundiais, quer dizer às lendas do desporto da F-1.*
Mas voltemos a Imola ’94, àquele fim-de-semana triste e terrível
quando ficaram no descoberto muitas coisas com toda a brutalidade e barbaridade.
Os moturistas já diziam por bastante tempo que a atenção prestada à segurança
deles não chegava – Ayrton apenas advertia, mas não fazia nenhumas medidas
concretas. Persuadiam-no de organizar um sindicato dos motoristas, mas ele não
gostava de se meter nisso, já conhecia de ginjeira a compleição das
autoridades, e como costumavam acabar os conflitos com o sistema.
“Eu
sou o único campeão mundial que ainda está – e eu abria a minha boca grande
com demasiada frequência. Durante os anos aprendi que mais valia baixar a cabeça…”
– foi assim que explicou a
indecisão dele, um pouco resignado, consciente de que não era possível vencer
o sistema.
Em
’93 descreveu assim as condições na F-1: “Por detrás da F-1 se esconde a política e as decisões do lado político
não são sempre correctas nem honestas, mas a gente tem que as aceitar, se
quiser ficar na F-1 porque não tem possibilidade de escolha. No desporto é
assim em geral, não apenas na F-1.”
Porém
advertia que o novo regulamento em vigor para o ano ’94 não fosse o melhores:
“É um erro grande fazer desaparecer
toda a electrónica tão de repente. Os bólides serão igualmente rápidos,
mais será mais difícil conduzi-los. O ano 1994 vai ser um ano com muitos
acidentes e até me atrevo a dizer que teremos muita sorte se não acontecer
nada de grave”, dizia, consciente de que os bólides voltaram a ser as
armas de certa forma.
Três dias antes da morte ele deu uma entrevista para a Radiotelevisão Croata e falou nisso com tanta paciêencia como se estivesse a falar com crianças. Estava consciente de que o mais provável era ele não ser compreendido, ainda que o ano ’94 já tivesse comecado como ele temia: com os acidentes. Foi só com a morte dele próprio que o processo ficou mais lento, obrigando aos funcionários de trabalhar.
E
naquele fim-de-semana fatal o único que teve sorte foi o Rubens Barrichello
por ficar quase intacto (de acordo com os estandartes da F-1). Isso foi a última
alegria naquele fim-de-semana, o que seguiu depois foi apenas a última
realidade, nua e sangrenta, do mundo da F-1, a verdade que se esconde com
todos os enfeites para não saltar demasiado nos olhos, mas que é uma das
maiores atracções daquele desporto. É precisamente isso o que atrai à
muita gente – aquela possibilidade de ser testemunha de uma coisa terrível,
de ser assombrado com aquela cena, e ao mesmo tempo sentir a alegria de que a
gente possa, simplesmente, vivir. Isso não se confessa à vontade, mas é
assim mesmo.
E
no sábado levaram da pista o Roland já morto. Era novo no mundo da F-1 e a
morte dele foi uma inconveniência para os organizadores, mas além disso, foi
coisa da estatística: era o motorista no. 35 morto na F-1. Nisso é que as
coisas teriam ficado nesse anfiteatro dos gladiadores, se ali não estivesse
alguém que ficasse ferido profundamente pelo olhar que revelava a segunda
cara do automobilismo. O Ayrton ficou horrorizado, mas não fechou os olhos e
fingia que, sem dúvida alguma, as coisas tinham que acontecer assim. Mas ele
sabia que não tinham, e queria ficar sabendo, pesquisar e perceber porque
isso tinha acontecido em verdade. Isso perturbou logo às autoridades, sabiam
que já não podiam fugir dele, porque se tivesse ficado vivo, teria empregado
todos os meios disponíveis e toda a força dele para pôr em ordem as coisas
na F-1. Nenhuma advertência, nenhum apavoramento da parte dos altos funcionários
teriam sido capazes de o impedir, não depois da morte do Roland. Visto que o
conheciam, tinham decidido de dar o primeiro passo. Os comissários do
desporto enviaram-lhe por escrito que ele não tinha nada que fazer no lugar
da morte do Roland Ratzenbeger e que ele precisava entregar uma explicação
escrita dizendo que queria ali. Estão a imaginar? Que queria ali…
Roland Ratzenberger
Isso
foi o pedido dos homens que nunca mostrariam o nariz fora das poltronas
seguras deles, os homens que apenas correm o perigo de “o céu lhes cair na
cabeça” caso o valor das acções diminua, eles é que repreendem
ao homem que num par de horas vai ter que se sentar num bólide
inseguro (e por isso perigoso pela vida), o homem que agora está mais
consciente de que tudo podia acabar para ele (tanto como para outro motorista
qualquer da F-1) da mesma forma como acabou para o Roland. Ayrton ficou
sabendo que lhe foi retirado a última coisa que sempre procurava preservar.
Foi assim que ele tentou descrever isso:
“Eu tento sempre, mesmo quando não se nota muito, ao conduzir, criar uma possibilidade pequenina de evitar, uma reacção imperceptível no assento, uma espécie da área pessoal da segurança, como se fosse um abrigo, para tentar fugir uma ferida grave.”
Foi
ali que essa possibilidade diminuta lhe foi retirada tanto no carro como fora
dele. Porque não havia maneira para evitar o começo da corrida no domingo: a
personalidade dele viu-se na tal situação no mundo naquele momento que
desistir teria sido negar tudo aquilo pelo qual lutava com tanta aplicação
toda a vida. A coragem, a força, a decisão – era para isso que ele tinha
que perseverar, porque não arrancar por temor à própria vida seria uma
derrota nos olhos dos milhões. Sabe-se lá, talvez o Ayrton tivesse decidido
de chorar na solidão a morte do colega naquele domingo, se não fosse adorado
com tanto fanatismo. Sendo assim, ele não podia, embora soubesse que ia bater
nos limites durante a corrida. Tinha que conduzir num bólide inseguro com a
mesma agressividade e potencial da juventude. Ele sabia tudo isso, mas mesmo
assim saiu no último caminho dele, ele não desistiu. Não teria desistido
nem sequer se tivesse sabido ao certo que a morte estava à espera dele,
porque sem aquela última viagem, a missão não teria sido completa, porque
“o que será, será, ele apenas seguirá tentando, até o fim do tempo.
Dizer
isso parece uma ironia terrível, mas está certo que os corações dos milhões
dos adeptos dele tiveram menos dificuldade em aceitar a morte dele do que
teriam se o Ayrton por acaso não tivesse ficado fiel aos ideais do Ayrton
Senna. Assim voltamos ao princípio: o facto de muitos dos escolhidos morrerem
no caminho, não quer dizer nada para eles. Eles precisam ficar fieis à voz
interior deles.
Uns anos mais tarde aconteceria mais uma morta bárbara de uma pessoa adorada pelos milhões porque ela lutava em contra das autoridades e para os ideais, ele não podia renunciar à simplicidade, que tem sido o caminho dela, apesar de pertencer a classe real. Diana, princesa de Wales, vai ser empurrada para a morte pelos jornalistas que, custe o que custar, precisavam de ter as mais recentes fotografias da “princesa do povo”, para que cada inglês verdadeiro pudesse ler o que fazia a princesa que adorava, tomando o chá. Não tem nada mau nisso, realmente queriam-na e precisavam dela com desespero, também como ela precisava deles. Mas a estranheza surgiu aqui também porque tudo se fez uma caça a uma mulher. Cada um que lia a prensa de coração com interesse participava naquele dia na caça junto com os paparazzi. Na ocasião do enterro da Diana quase parecia que a multidão sentia a culpa inconscientemente. Em todo caso no caixão dela faltava aquela rosa vermelha como um símbolo, não havia quem a pusesse. Nota-se também a ironia porque as pessoas conseguiram aceitar a morte dela melhor do que teriam aceitado se ela tivesse casado com um estrangeiro (que horror para a família real!) e se tivesse sido simplesmente feliz.
A
multidão dos brasileiros que acompanhavam o Ayrton no caminho até o lugar do
descanso final dele deste mundo exprimiam outra coisa – a gratidão. As
pessoas, que possuiam pouco na vida real, souberam mostrar a gratidão pelo
que o Ayrton defendia, para si e para eles, até a morte. E o facto de o
Michael Schumacher ter sido o único colega que não esteve presente ao pé do
féretro, revela um certo sentimento da culpabilidade. Aliás, no começo do
ano ouviam-se os rumores que a equipa Benetton (pela qual o Michael Schumacher
conduzia naquela altura) empregava meios proibidos. O próprio Ayrton foi
perguntado se estava preocupado por ter, se calhar, oponentes que não sejam
honestos:
“Em verdade não posso dizer
muitas coisas sobre isso. É difícil falar das coisas que não se podem
comprovar” – respondeu com
cuidado. (Não viveu para ver o dia quando isso foi comprovado ao Benetton),
Por isso é que a ausência do Michael no funeral do Ayrton fala por si própria.
As desculpas que temia pela própria vida parecem futis, sabe-se que o Michael
Schumacher não é cobarde. Este comportamento ficará para sempre como uma nódoa
na carreira brilhante dele, porque ele é o herdeiro directo, e se olharmos
apenas as capacidades do motorista, ele é um herdeiro digno do Senna. É uma
pena que não se tenha despedido do grande homem como ele o merecia.
E no dia quando os milhões disseram adeus ao Ayrton, Michael não tinha nada que temer mesmo. Nos jornais estava escrito que no dia do funeral do Senna em São Paulo não aconteceu nenhum assasinato, nenhum roubo, nenhum desordem. A tristeza ganhou sobre violência pelo menos por um dia; a tristeza global que deu uma volta do planeta, porque quanto mais vale um homem, a tristeza por ele é maior
* Os factos tomados da revista “Auto Motor Sport” – Extra Formel 1, 1997.